quinta-feira, 26 de março de 2009

O corpo delas ontem...

Em Os silêncios do corpo da mulher, Michelle Perrot fala das mulheres, pessoas esquecidas, sem voz na História. Do silêncio do corpo (restrito a função anônima e impessoal da reprodução).

Onde se encontra o corpo feminino?
Nos discursos médicos, poéticos e políticos e nas imagens de quadros, esculturas e cartazes.

O corpo feminino exposto, encenado, objeto de olhares e desejos. O corpo feminino falado, porém permanece calado e opaco. Mulheres não falam (por muito tempo não devem falar) do próprio corpo. Eis a marca da feminilidade construída ao longo da História.

O peso do silêncio
. Corpo privado oculto. Corpo público exibido, apropriado e carregado de significação. Assim como os corpos do rei, na obra Os dois corpos do rei (Kantarowics, 1998).

Zonas de silêncio
. O corpo feminino reduzido ao silêncio da figuração muda. A vitrine do marido, de acordo com a filosofia pitagórica. Espetáculo do homem na publicidade e na arte. Alegoria política do Estado. O corpo feminino apagando as singularidades em função de conformar-se a um modelo impessoal. Discrição, dissimulação através de códigos (variáveis segundo o lugar e o tempo), comedimento nos gestos, olhares e exteriorizações de emoções, uso da voz e permissão ao choro discreto (atributo particular de sua feminilidade).

O silêncio da vida íntima do corpo da mulher, etapas de transformação do corpo feminino, mutações que as levam a reprodução. Menstruação, masturbação e menopausa.

A vida sexual feminina, cuidadosamente diferenciada da procriação, também permanece oculta. O prazer feminino negado e reprovado. A sexualidade coagida como dever conjugal. A descrição cerca o leito conjugal.

Infanticídio e aborto, remotas profundezas do silêncio solitário. Angústia quanto aos muitos nascimentos. Sedução criando o perigo do nascimento ilegítimo. Repressão da Justiça. Parteiras e médicos "marrons". Leis de 1920 e 1923. Corpo nacionalizado.

O silêncio sobre o corpo feminino como alvo de violência. Direito privado, segredos de família e pátrio poder. Espancamento, estupro e incesto.

Última zona de silêncio: as doenças das mulheres. As doenças do corpo e as doenças do espírito. Por que esse silêncio? "Quais são os fundamentos, as raízes do silêncio acerca do corpo da mulher?" Silêncio de longa duração, alicerçado na construção do pensamento simbólico da diferença entre homem e mulher. Reforçado ao longo do tempo pelo discurso médico e político. As representações do corpo feminino fundamentadas a partir do pensamento filosófico grego. As representações religiosas, sobretudo presentes nas grandes religiões ocidentais. O século XIX determina a negação à instrução para as meninas do povo e com reservas para as das camadas privilegiadas. A educação é essencial para todas, usada como amparo sociocultural para a dominação do corpo feminino.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Corpo e Gênero


O corpo como situação, segundo Judith Butler analisando Simone de Beauvoir, "o corpo como um lugar de interpretações culturais é uma realidade material que já foi situado e definido dentro de um contexto social(...) O corpo torna-se um nexo peculiar de cultura e escolha (...) então gênero e sexo parecem ser questões inteiramente culturais." O corpo feminino, o corpo masculino. Polaridade de gênero.

Analisando essas idéias, lembrei-me de uma história que ouvi sobre Coema e Quirimã, índios tupinambás. Quando Coema menstruou pela primeira vez, teve os cabelos cortados e as costas arranhadas com presas de onça pintada. Quando os cabelos crescessem e as feridas cicatrizassem, ela seria entregue como esposa a um guerreiro da tribo. Em várias tradições indígenas, no final da infância, havia um ritual de passagem para a adolescência, variando de tribo para tribo. As meninas eram isoladas e ficavam de jejum por algum tempo, ouvindo mulheres mais velhas a respeito da condição feminina. Solteiras usavam os cabelos soltos; ao se casarem, aos 12 ou 13 anos, cortavam o cabelo à altura das orelhas, poliam os dentes e arrancavam pestanas e sobrancelhas. Já os meninos recebiam um tembetá ou metara, é uma espécie de adorno confeccionado com ossso, pedra ou madeira, no lábio inferior, simbolizando a virilidade. Só se tornavam adultos após demonstrar coragem e habilidade guerreira. A pintura corporal era essencial no relacionamento entre as pessoas, pois identificava o indivíduo, sua ação e seus sentimentos.

Voltando aos tupinambás, Coema e Quirimã andavam constantemente juntos, apanhando frutos ou tanajuras (içás). Tatuavam-se, depilavam-se, catavam e comiam piolhos um do outro e tomavam banho de rio várias vezes por dia. Quirimã já havia trocado a ponta de chifre de veado que seu pai usara para atravessar-lhe o lábio inferior por uma pedra grande e verde, significando que Quirimã se tornara um homem, porém permanecia com um único nome (quando um guerreiro matava um inimigo, ganhava um nome novo) e não podia casar com Coema , pois ainda não matara nenhum inimigo. Voltando a Judith Butler, agora analisando Monique Wittig, "a demarcação da diferença dos sexos não precede a interpretação daquela diferença, mas essa demarcação é por sua vez um ato interpretativo carregado de pressupostos normativos sobre um sistema binário de gêneros." O que signifca ser homem? O que significa ser mulher?