quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Mitos masculinos

As mulheres aprenderam desde criança sobre a potência dos homens, os machos. Aprenderam que devem ser satisfeitas, ultrapassando as poucas condições devem aguardar que isso aconteça, carregando uma sossegada inércia. As mulheres não satisfazem, precisam ser satisfeitas, a tarefa é atribuição dos homens que, dotados de um espírito de responsabilidade atrelado ao preparo físico, lançam-se à epopéia amorosa, rogando ao criador que seu preparo não falhe.

Raiz de inúmeros sofrimentos para a maior parte dos machos, essas verdades nunca foram abaladas por qualquer dúvida, nunca foram motivo de questionamento. Como pau é pau e pedra é pedra, como as mulheres são doces e os homens fortes, como uma menina é frágil e um menino não chora, e prendam suas cabras que o meu bode está solto, assim também, os homens são donos das mulheres, fazem gozar, e as mulheres gozam. E quem não consegue está ferrado e quem não atinge o osgasmo é uma chata. Para uns e outros essa é uma verdade, mas não para todos.

A imagem dos homens super amantes, solucionando a contento os problemas sexuais ou nunca os encontrando, integra uma mitologia infantil que se evidencia na puberdade tomando a forma de expectativa de si mesma ou mesmo.

Em uma roda de amigos ou colegas de trabalho, após algumas doses, não há quem duvide de que o homem é antes de tudo poderoso. Forte e atrevido na conquista das mulheres, livre e sem dor na consciência na hora de escanteá-las. Enfim, cara de pau e malandragem são ingredientes necessários na receita do verdadeiro amante, ciente de todas as artes do amor.

Internalizada nesse auto-retrato de masculinidade agressiva, forte e poderosa, aparece como seu pano de fundo a imagem da fêmea desprotegida, casta e passiva, que depende do entusiasmo masculino para ser seduzida. Ela quase nada sabe sobre sexo, afinal como deve ser toda mulher séria. Possui desejos não definidos, ou pouco devassados. Dependendo afinal do macho aventureiro, do mestre que virá transformá-la numa mulher satisfeita , que lhe fará aprender os segredos do sexo.

O prazer feminino aparece dependente do desempenho masculino, e se estrutura a partir do prazer que ele é capaz de proporcionar. Não há iniciativa feminina, somente conformação. Crer nesse modelo de passividade feminina é a forma confortável que o homem encontrou para sentir-se seguro. Mulheres passivas, inertes, evitam maiores problemas.

O grande problema é que as próprias mulheres interiorizam essa imagem sexual e tendem a se comportar em função dela, dando, assim, muita importância ao arsenal de mitos que a ingenuidade e o desejo de dominação dos homens conta sobre a inocência e passividade femininas. Elas acabam confirmando profecias que não se baseiam em nada mais do que na própria necessidade masculina de se sentir seguro.

quarta-feira, 10 de junho de 2009



E repentinamente Dora decidiu, cheia de alegria e cor, mostrar-se. Fugiu de casa, enlouquecida, primitiva, espírito de aventura, insondável, arriscou, não pediu licença para aparecer. Tudo que uma mulher não costumava ser, tudo que ela não podia ser. Perdeu a "vergonha".

Ela decidiu mudar sua vida de "perfeita rainha do lar". Sobre todas que tomaram a decisão de mudar de vida pairou uma desconfiança de falta de vergonha na "cara". Porque as "honestas", as que denominavam-se "direitas", tinham vergonha. Tinham vergonha de ser mulher, na verdade, ninguém nunca compreendeu ao certo por quê.

Dora ocultava as reações do corpo e o próprio corpo, até os mais evidentes desejos, ocultava até o que pensava, sentia apenas o que lhe era permitido. Se estava satisfeita ou insatisfeita, quem ligava? Importava ser "direita", ter vergonha, ser recatada conhecendo o seu lugar.

Imaginem se, de uma hora para outra, deixando os bloqueios de lado, as mulheres decidissem falar o que pensavam, o que desejavam da vida, o que setiam? Não exatamente confessando para as melhores amigas ou nos diários trancafiados, mas escandalosa e abertamente?

Inicio agora uma série de textos refazendo o caminho daquelas que foram quebrando o silêncio sobre o feminino e reinventando a coragem de ser mulher.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O corpo delas hoje...

Falar do próprio corpo. Na atualidade as coisas mudam, o corpo feminino destaca-se por ser estratégico para o jogo geográfico. Há uma elaboração de novos valores sobre o corpo.

Estamos em uma fase de melhora das condições de saúde da mulher. Novas práticas corporais. Revistas femininas desenvolvendo um ideal de beleza específico. A luta pela autonomia de seu corpo torna-se a grande bandeira do feminismo contemporâneo.

Na contemporaneidade, a luta feminista passa por etapas. Pioneiras ousam desafiar as proibições e quebrar tabus. George Sand, Colette e Virgínia Woolf são algumas delas.

Entre 1900/1920 as mulheres se atrevem a outro discurso acerca do corpo feminino. Surgem as primeiras enfermeiras ou médicas mais atentas aos problemas das mulheres. Um exemplo é a Dra. Madeleine Pelletier que em 1926 defendeu o direito de aborto.

Em pleno baby boom (1949), Simone de Beauvoir publica O segundo sexo, introduzindo a idéia de "gênero" e abrindo caminho para o feminismo contemporâneo.

Os neomalthusianos, entre eles mulheres como Jeanne Humbert, Nellly Roussel, Madeleine Pelletier, exortam as classes populares a limitar a prole, propondo-lhes métodos contraceptivos.

Entre as guerras acontece o Birth control, principalmente nos EUA e na Inglaterra. Em 1956 inicia-se o planejamento familiar na França e em 1961 surge a pílula anticoncepcional.

A Lei Neuwirth, na França, em 1967, legaliza o uso de contraceptivos e revoga a lei de 1920. A Lei Veil, na França, em 1975, legalizou o aborto. Nos anos seguintes o estupro foi declarado crime, surgem leis sobre o assédio sexual, repressão do incesto e associações contra as violências feitas às mulheres.

O silêncio vencido. Uma forma de revolução, no entanto, não significa que tudo esteja resolvido. Um pesado silêncio continua recobrindo os sofrimentos do corpo da mulher no mundo.

quinta-feira, 26 de março de 2009

O corpo delas ontem...

Em Os silêncios do corpo da mulher, Michelle Perrot fala das mulheres, pessoas esquecidas, sem voz na História. Do silêncio do corpo (restrito a função anônima e impessoal da reprodução).

Onde se encontra o corpo feminino?
Nos discursos médicos, poéticos e políticos e nas imagens de quadros, esculturas e cartazes.

O corpo feminino exposto, encenado, objeto de olhares e desejos. O corpo feminino falado, porém permanece calado e opaco. Mulheres não falam (por muito tempo não devem falar) do próprio corpo. Eis a marca da feminilidade construída ao longo da História.

O peso do silêncio
. Corpo privado oculto. Corpo público exibido, apropriado e carregado de significação. Assim como os corpos do rei, na obra Os dois corpos do rei (Kantarowics, 1998).

Zonas de silêncio
. O corpo feminino reduzido ao silêncio da figuração muda. A vitrine do marido, de acordo com a filosofia pitagórica. Espetáculo do homem na publicidade e na arte. Alegoria política do Estado. O corpo feminino apagando as singularidades em função de conformar-se a um modelo impessoal. Discrição, dissimulação através de códigos (variáveis segundo o lugar e o tempo), comedimento nos gestos, olhares e exteriorizações de emoções, uso da voz e permissão ao choro discreto (atributo particular de sua feminilidade).

O silêncio da vida íntima do corpo da mulher, etapas de transformação do corpo feminino, mutações que as levam a reprodução. Menstruação, masturbação e menopausa.

A vida sexual feminina, cuidadosamente diferenciada da procriação, também permanece oculta. O prazer feminino negado e reprovado. A sexualidade coagida como dever conjugal. A descrição cerca o leito conjugal.

Infanticídio e aborto, remotas profundezas do silêncio solitário. Angústia quanto aos muitos nascimentos. Sedução criando o perigo do nascimento ilegítimo. Repressão da Justiça. Parteiras e médicos "marrons". Leis de 1920 e 1923. Corpo nacionalizado.

O silêncio sobre o corpo feminino como alvo de violência. Direito privado, segredos de família e pátrio poder. Espancamento, estupro e incesto.

Última zona de silêncio: as doenças das mulheres. As doenças do corpo e as doenças do espírito. Por que esse silêncio? "Quais são os fundamentos, as raízes do silêncio acerca do corpo da mulher?" Silêncio de longa duração, alicerçado na construção do pensamento simbólico da diferença entre homem e mulher. Reforçado ao longo do tempo pelo discurso médico e político. As representações do corpo feminino fundamentadas a partir do pensamento filosófico grego. As representações religiosas, sobretudo presentes nas grandes religiões ocidentais. O século XIX determina a negação à instrução para as meninas do povo e com reservas para as das camadas privilegiadas. A educação é essencial para todas, usada como amparo sociocultural para a dominação do corpo feminino.